quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Roteiro do Júri

Roteiro do Júri
Marcelo Bertasso (Juiz de Direito - Paraná)

É comum que Juízes se valham de roteiros para a presidência de sessões do Júri, afinal, trata-se de ato complexo e extenso, de modo que só depois de muita experiência alguém consegue realizá-lo sem recorrer a alguma cola.

Sendo assim, e diante das recentes alterações, peguei todos os meus roteiros, misturei, revisei e criei um novo, já atualizado. Peço aos leitores que militam ou gostam de Júri que enviem sugestões e críticas a respeito dele, para que eu possa aprimorá-lo. Segue:

I. INSTALAÇÃO
1. Declaro abertos os trabalhos da ____ sessão da ____ reunião do Tribunal do Júri da comarca de Altônia no ano de 2008. (art. 462).
- Verificar, nesse momento, se na urna estão os nomes dos 25 jurados sorteados (art. 462)
- Analisar pedidos de dispensa e adiamento e consigná-los em ata (art. 454 c/c 462).

2. Determino ao Sr. Escrivão que realize a chamada dos jurados sorteados (art. 463).

03. Tendo comparecido o número de ________ jurados declaro instalada a presente sessão.

04. Aos jurados faltosos (nomear) aplico a multa de R$ _________, ficando os mesmos desde já sorteados para a próxima sessão. (art. 443, § 1º e 445, § 3º).

05. Procederei a seguir o sorteio dos jurados suplentes, determinando ao senhor escrivão que consigne seus nomes e os notifica para comparecerem no dia _______, às _______ horas, para a próxima sessão. (art. 445).

06. Vai ser submetido a julgamento o réu: ___________________ (ler qualificação da denuncia). Determino ao senhor porteiro dos auditórios que apregoe as partes e as testemunhas, colocado em salas separadas as da acusação, das de defesa, (art. 447 e 454).

07. A seguir o Juiz declara: “Vou proceder ao sorteio dos sete jurados que deverão compor o conselho de sentença. Devo adverti-los, entretanto, que são impedidos de servir no mesmo conselho: marido e mulher, ascendentes e descendentes, sogro ou genro ou nora, cunhados durante o cunhadio, tio e sobrinho, padrasto ou madrasta. Também não poderão servir os jurados que tiverem parentesco com o Juiz (_____________________________________), com o promotor (_____________________________________), com o advogado (_____________________________________), com o réu (_____________________________________) e com a vítima (_____________________________________). (art. 448 CPP).
Os jurados que serviram em julgamento anterior do mesmo processo (se houve) estão impedidos de servir.
Aqueles que se encontrarem nestas situações, queiram imediatamente se levantar!
Advirto-os, ainda, que uma vez sorteados não poderão comunicar-se com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, pena de exclusão do conselho e de multa de um a dez salários mínimos (art. 466, § 1º).
A defesa e a acusação poderão, ainda recusar, cada qual, imotivadamente, ate três jurados”.
Procederemos agora ao sorteio dos jurados. (sorteia normalmente o próprio juiz) A cada nome consultar as partes, iniciando-se pela defesa, sobre recusas. Convidar os não recusados para tomar assento.

08. Está formado o conselho de sentença, farei a exortação legal, e à chamada, cada um dos senhores deverá responder “Assim prometo”. Todos de pé. “Em nome da lei, concito-vos a examinar com imparcialidade esta causa e a proferir vossa decisão de acordo com a vossa consciência e com os ditames da Justiça” art. 472).
- Entregar aos jurados, nesse momento, cópias da decisão de pronúncia e de posteriores decisões que julgaram admissível a acusação, assim como cópia escrita do relatório a respeito do processo.

09. Podem sentar. Os senhores jurados não sorteados estão dispensados com nossos agradecimentos.

II. INSTRUÇÃO

10. Inquirição de testemunhas. Ordem: ofendido, testemunhas de acusação e defesa.
- As partes perguntarão diretamente às testemunhas. Nas testemunhas de defesa, as perguntas da defesa antecederão às do Ministério Público e do assistente de acusação.
- Jurados também reperguntam, mas por intermédio do Juiz presidente.
- Após ouvidas as testemunhas, consultar as partes acerca da possibilidade de dispensá-las de imediato ou se pretendem que permaneçam até o fim dos debates, para eventual reinquirição.
- Verificar necessidade de acareações.

11. Leitura de peças (somente as que se refiram a provas colhidas por carta precatória e às provas cautelares, antecipadas ou não repetíveis).

12. Interrogatório do réu.
- Advertência ao réu de que tem o direito constitucional de permanecer calado, mas se trata do momento próprio de dar a sua versão dos fatos às pessoas que irão proferir o julgamento.
- Partes pergunta diretamente. Inicia-se pelo MP.

III. DEBATES

13. Palavra ao Ministério Público e à defesa. Tempo: uma hora e meia para cada.

14. Réplica e tréplica: uma hora.

- Havendo mais de um acusador ou defensor, devem combinar a distribuição de tempo.
- Mais de um acusado: duas horas e meia de debates e duas horas de réplica e tréplica.
- Atentar para o art. 478:
Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:
I - à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado;
II - ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo.
- A acusação, a defesa e os jurados poderão, a qualquer momento e por intermédio do juiz presidente, pedir ao orador que indique a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada, facultando-se, ainda, aos jurados solicitar-lhe, pelo mesmo meio, o esclarecimento de fato por ele alegado (art. 480).
- Apartes: doravante serão regulamentados pelo Juiz Presidente, e poderão durar até três minutos, que serão acrescidos ao tempo do aparteado (art. 497, inciso XII).

15. Findos os debates, verificar se desejam reinquirir testemunhas ou diligências.

16. Indagará dos jurados se estão habilitados a julgar ou se necessitam de outros esclarecimentos (art. 480, § 1º).

17. Ler quesitos e indagar das partes se têm requerimentos a fazer. Explicar brevemente aos jurados os significados de cada quesito.

IV. JULGAMENTO E ENCERRAMENTO

18. Julgamento em sala secreta. Observar arts. 482 a 491 do Código de Processo Penal. O resultado não será identificado. O quarto voto pelo SIM ou pelo NÃO encerra a votação do quesito.

19. Leitura da sentença e encerramento da sessão. “Declaro encerrados os presentes trabalhos relativos à ____ sessão da ____ reunião periódica do corrente ano de __________, do Tribunal do Júri Popular desta comarca. Preleções e agradecimentos finais”.

Fonte: http://mpbertasso.wordpress.com

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O MOMENTO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA A PARTIR DA LEI Nº 11.719/08

Artigo muito legal de juiz do Paraná sobre o recebimento da denúncia depois das alterações do CPP.

O MOMENTO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA A PARTIR DA LEI Nº 11.719/08

Marcelo Pimentel Bertasso
Juiz de Direito no Paraná

A Lei nº 11.719/08, ao modificar o procedimento para julgamento de crimes de competência do juízo monocrático, instituiu verdadeira balbúrdia no ordenamento processual, diante da alteração da redação dos arts. 396 e 399 do Código de Processo Penal, que passaram a ter o seguinte teor:

Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.

(…)

Art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.

Assim, aparentemente, a nova lei trouxe dois momentos para o recebimento da denúncia: um, logo após o seu oferecimento, e antes de citado o réu; outro, após a citação e a defesa preliminar, ocasião em que o magistrado enfrentará as situações previstas no art. 397, podendo, então, absolver sumariamente o denunciado.

Diante dessa antinomia, diversas foram as soluções propostas pela doutrina. Houve quem sustentasse que, a partir da nova lei, dois seriam os momentos de recebimento da denúncia, devendo o juiz, no segundo momento, ratificar o recebimento provisório anteriormente efetuado. Também sustentou-se que a denúncia seria recebida no primeiro momento, de modo que a regra do art. 399 do CPP referir-se-ia apenas à análise das causas de absolvição sumária do art. 397. Por fim, doutrinadores de nomeada têm sustentado que o recebimento da denúncia somente pode ocorrer após o contraditório prévio. Para esses, a regra do art. 396 deve ser interpretada conforme a Constituição, de modo que o termo citação deve ser substituído por notificação, desprezando-se o termo “recebe-la-á” constante do art. 396.

Entendo que a solução é encontrada de forma simples, atenta ao texto expresso da lei e partindo da interpretação histórica. Por ela, o exegeta cuida de verificar as circunstâncias que envolveram o momento de criação e aprovação da norma jurídica, buscando aferir os propósitos que levaram à edição do texto nos termos em que vazado. Assim, para que se possa averiguar o real alcance da reforma do Código de Processo Penal, é importante que se atente para as ocorrências que se deram no curso de sua aprovação.

Nesse passo, cabe mencionar a lembrança feita por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[1] de que a redação original do Projeto de Lei nº 4.701/01, que deu origem à Lei nº 11.719/08, previa, em seu art. 395, a ocorrência de um contraditório anterior ao recebimento da denúncia. Contudo, foi oferecida emenda na Câmara dos Deputados que alterou o teor da norma, incluindo o termo “recebê-la-á” ao então art. 396.

Diante dessa alteração substancial do conteúdo da norma, pode-se construir uma primeira e segura afirmação: se inicialmente o legislador pretendia que o recebimento da denúncia fosse precedido de contraditório, essa vontade desapareceu a partir do acolhimento da emenda acima citada. Num raciocínio inverso, pode-se concluir que, a partir da tal emenda, tudo o que o legislador não quis foi ver o recebimento da denúncia precedido de contraditório prévio pois, se o quisesse, bastaria ter mantido a redação original do projeto.

Assim, valendo-se uma interpretação histórica, já se pode lançar, como base da fundamentação deste artigo, a idéia de que a existência de um contraditório que antecedesse o recebimento da denúncia não figurava dentre os propósitos do legislador da reforma.

Além desse argumento, a análise da novidade legislativa, em cotejo com outros dispositivos do Código de Processo Penal, permite chegar à mesma conclusão, qual seja, de que o recebimento da denúncia, a partir da Lei nº 11.719/08, se dá na fase do art. 396.

Veja-se, de início, que tal dispositivo, ao utilizar os termos “recebê-la-á”, “citação” e “acusado”, deixa claro que o efetivo recebimento da denúncia ocorre quando o processo vai ao magistrado pela primeira vez, antes da defesa preliminar. Essa idéia é reforçada quando se recorre ao art. 363 do Código de Processo Penal, que dispõe que “o processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado”. Ora, se o “acusado” é “citado” para (e não após) oferecer defesa preliminar, formando-se a relação processual (que prescindirá de ato posterior), é evidente que isso ocorre porque a denúncia já foi recebida, e isso ocorreu na fase prevista no art. 396.

Além disso, para demonstrar o acerto da tese, cabe observar a hipótese de o réu não ser localizado. Nos termos do parágrafo 1º do art. 363, “não sendo encontrado o acusado, será procedida a citação por edital”. Por outro lado, o parágrafo único do art. 396 determina que “no caso de citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído”. Nesse caso, havendo citação editalícia e não sendo encontrado o réu, há que se aplicar a regra do art. 366 do Código de Processo Penal, que diz que “se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”.

A harmonização de todos esses textos somente ocorre se concluirmos que a denúncia foi recebida na fase do art. 396 do Código de Processo Penal. Com efeito, não se pode conceber que o réu seja “citado” por edital para oferecer resposta preliminar (cujo termo inicial começará a correr com sua apresentação em juízo) se a denúncia sequer foi recebida. A situação se agrava caso se pretenda aplicar a regra do art. 366. Embora o não recebimento da denúncia não obste a suspensão do prazo prescricional, não se pode falar em “produção antecipada de prova” sem denúncia anteriormente recebida, porque neste caso haverá grande dificuldade em se caracterizar essa prova pré-processual, na medida em que produzida sem denúncia recebida. Daí concluir-se que, efetivamente, o recebimento da denúncia, na sistemática estabelecida pela Lei nº 11.719/08, ocorre antes da defesa do denunciado.

Destarte, a única interpretação apta a tornar compatíveis todas as disposições do Código de Processo Penal acerca da formação do processo, recebimento da denúncia e citação (pessoal e editalícia) é a que considera que o recebimento da denúncia se dá na fase do art. 396.

O cotejo de dispositivos legais em um sistema de valores e normas (interpretação sistemática) é um meio válido para a solução de antinomias, e se revela especialmente adequado para as hipóteses de conflitos entre dispositivos de um mesmo Código. É que, nesse caso, a interpretação do diploma legal deve se dar de modo uniforme, considerando um texto como um todo e evitando contradições entre seus dispositivos, surgindo daí a necessidade de compatibilização entre eles.

Mas, adotando a tese defendida acima, como interpretar o art. 399, que também remete ao recebimento da denúncia?

Não entendo adequada a solução preconizada por alguns no sentido de que a norma ali contida estaria a prever um segundo momento de análise da denúncia, levando a seu recebimento.

O art. 395 prevê as causas de rejeição da denúncia e o art. 396, ao prever o momento de recebimento da denúncia, demonstra claramente que nessa fase o juiz poderá rejeitá-la se presentes as hipóteses do artigo anterior. Sendo assim, se o julgador recebe a inicial, não me parece que seja adequado estabelecer um segundo momento para análise de seu cabimento, re-analisando as hipóteses do art. 395.
Poder-se-ia dizer que, nesse segundo momento, o magistrado analisaria as hipóteses do art. 397 do Código de Processo Penal. Não me parece, contudo, a melhor solução, porque tais situações não se referem mais a rejeição da denúncia, mas sim a absolvição sumária.

O cotejo entre as hipóteses dos arts. 395 e 397 permite vislumbrar que, no primeiro caso, estamos diante de matérias processuais, cujo acolhimento, de regra, ensejará a rejeição da denúncia sem produzir coisa julgada material. Já no segundo caso temos verdadeira análise do mérito da demanda, que conduz à absolvição sumária (impropriamente empregada, apenas, no caso de existência de causa de extinção de punibilidade – art. 397, inciso IV) e produz, como efeito, a coisa julgada material.

Se é assim, não se pode falar em rejeição da denúncia na fase do art. 399 do Código de Processo Penal embasada em uma das hipóteses do art. 397, pois estas conduzem a juízo de mérito conducente à absolvição.

Dessa forma, parece-me inadequado o raciocínio de que haveria dois momentos de análise do cabimento da denúncia. Na sistemática da Lei 11.719/08, oferecida a denúncia e conclusos os autos ao juiz, ou este a rejeita por motivos processuais (art. 395), ou a recebe. Como ficariam, então, os arts. 397 e 399?

Em relação ao art. 397, a melhor solução é considerar que sua instituição propicia, no Processo Penal, a efetivação de julgamento antecipado (restrito ao caso de improcedência patente da pretensão punitiva). Com efeito, somente se justifica a regra do art. 397 do Código de Processo Penal quando o magistrado possa, antes da instrução e a partir dos elementos constantes dos autos, absolver sumariamente o réu (ou julgar extinta a sua punibilidade).

Trata-se, portanto, de mecanismo de antecipação do julgamento de mérito, antes do término da instrução, a fim de garantir solução célere nos casos de manifesta improcedência.

Por outro lado, o art. 399 deve ser interpretado como complemento do art. 396, verdadeira regra que se insere dentro do momento processual previsto no segundo dispositivo. Assim, há que se concluir que a regra do art. 399, adicionada ao sentido do art. 396 e complementando o termo “recebê-la-á”, apenas estabelece que o juiz, ao admitir o processamento da denúncia, além de determinar a citação do réu para apresentar defesa (art. 396), deverá, já no despacho inicial, designar audiência de instrução e julgamento (art. 399).

Tal conclusão se justifica por dois motivos principais. Em primeiro lugar, porque, tendo a reforma do Código de Processo Penal como tônica a promoção da celeridade nos julgamentos (daí a concentração de atos processuais em uma única audiência), não se pode admitir que o juiz tenha de aguardar a apresentação de resposta e a re-análise da admissibilidade da inicial para somente então designar essa audiência. Por celeridade, a data do ato já deve ser designada desde logo, evitando-se o retorno dos autos à conclusão, respeitando-se apenas o prazo de dez dias para apresentação de resposta. Os autos apenas voltarão ao juiz caso o acusado, em sua defesa, invoque a absolvição sumária, hipótese em que, acolhendo a tese, restará prejudicada a audiência. Não havendo invocação desse tema por ocasião da defesa, desnecessária a conclusão e o feito somente retornará ao magistrado (salvo eventual incidente processual) quando da realização da audiência.

O segundo motivo relaciona-se, uma vez mais, com a harmonização entre a interpretação dos demais dispositivos do Código de Processo Penal com as regras impostas pela reforma.

É que os arts. 352, 354 e 365 do Código de Processo Penal, que cuidam, respectivamente, dos requisitos do mandado, da carta precatória e do edital de citação, prevêem que tais documentos deverão mencionar o “juízo e o dia, a hora e o lugar em que o réu deverá comparecer”. É evidente que o legislador, ao mencionar dia e hora para apresentação, refere-se à audiência, que agora é una, à qual deverá comparecer o réu.

Considerando-se que o mandado, a carta precatória e o edital de citação somente são expedidos após o recebimento da denúncia, e que nele deve haver menção à data de audiência, é curial que a data dessa audiência deverá constar do despacho de recebimento da denúncia.

Embora possa-se afirmar que tais determinações legais foram esquecida pelo legislador da reforma, não se pode olvidar que os artigos da Lei nº 11.719/08 devem ser interpretados de acordo com as disposições legais que remanesceram, formando um conjunto uno e coerente. Ignorar artigos remanescentes sem que os legislador os tenha revogado não é a melhor técnica interpretativa, porque a conseqüência é formar-se ilhas do Código de Processo Penal, umas atualizadas e aplicáveis e outras remanescentes e sem aplicabilidade. A melhor solução, portanto, é adequar as novidades legislativas ao corpo do Código de Processo Penal, o que resulta na adoção da tese aqui defendida.

Deste modo, há que se interpretar a regra do art. 399 do Código de Processo Penal como complemento do termo “recebê-la-á”, constante do art. 396, concluindo-se, com isso, que no despacho inicial o juiz receberá a denúncia e determinará a citação do réu para comparecer à audiência, que será designada em tal despacho, respeitando-se, apenas, o prazo de dez dias para apresentação de defesa.

Com isso, conclui-se que o procedimento trazido pela Lei nº 11.719/08 segue as seguintes etapas:
Oferecimento da denúncia
• Recebimento da denúncia já no despacho inicial, designação de audiência de instrução e julgamento e determinação de citação do réu para apresentação de defesa e comparecimento ao ato designado.
• Eventual análise, antes da realização da audiência, e em caráter prejudicial, de pedido de absolvição sumária veiculado pela defesa.
• Audiência de instrução e julgamento.

Por fim, há que se tecer algumas críticas à tese que considera que o recebimento da denúncia somente ocorre na fase do art. 399 do Código de Processo Penal, após efetivado contraditório prévio.

Data venia, não tenho essa como a melhor solução. A princípio, porque se afigura evidente a intenção do legislador de não adotar essa disciplina procedimental quando a extirpou do projeto de lei original, estabelecendo emenda que antecipou o juízo de recebimento da denúncia para antes da defesa.

Afora isso, a conclusão pela possibilidade de recebimento da denúncia apenas na fase do art. 399 do Código de Processo Penal somente poderia se dar caso se desprezasse o conteúdo do art. 396. Alguns doutrinadores sustentam que a solução seria interpretar o termo “citação”, contido no dispositivo, em notificação, acolhendo-se a expressão “recebê-la-á” em seu sentido meramente material e não jurídico.

Não me parece justificável, contudo, tamanho exercício hermenêutico, que acaba se transformando em verdadeira ginástica do exegeta para alterar o sentido de disposição que ficou claramente demonstrada na lei. Em outras palavras, o intérprete está não só a desprezar o expresso texto da lei, como a criar direito novo, agindo como verdadeiro legislador positivo.

Lênio Luiz Streck[2] foi quem, até o momento, enfrentou melhor o tema. Para ele, a solução do caso dar-se-ia pela interpretação do art. 396 conforme à Constituição, com nulidade parcial sem redução de texto, extirpando-se o termo “recebê-la-á”, por inconstitucional.

A despeito de ser logicamente adequada a solução proposta, não vejo argumento constitucional suficiente para considerar que a regra do art. 396 violaria o texto da Carta da República. Qual seria o artigo violado? Não há, em princípio, qualquer texto constitucional aplicável à hipótese.

Lênio Streck apóia sua fundamentação nos princípios da proibição do retrocesso e da isonomia. Segundo o autor, se leis especiais (como a Lei nº 8.038/90 e a Lei 11.343/06) garantem um contraditório prévio a determinados réus, também deveria o Código de Processo Penal fazê-lo. Com a devida vênia, não se pode cogitar de violação ao princípio da isonomia quando normas estabelecem ritos procedimentais diversos com base não em potenciais réus, mas em crimes que, em tese, podem ser cometidos por qualquer pessoa. O fator de discrimen para emprego de um ou outro procedimento não é o sujeito do delito, mas o delito em si (fator objetivo), daí porque é plenamente lícito ao legislador, considerando as peculiaridades de cada crime, estabelecer diferentes disciplinas procedimentais, sem que isso implique em tratamento desigual de pessoas.

Também não se afigura adequada ao caso a aplicação do princípio da proibição de retrocesso. Sobre ele, ensina George Marmelstein Lima[3]:
Esse princípio, de acordo com Canotilho, significa que é inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios. Assim, em tese, somente seria possível cogitar na revogação de direitos sociais se fossem criados mecanismos jurídicos capazes de mitigar os prejuízos decorrentes da sua supressão.

(…)
A idéia por detrás do princípio da proibição de retrocesso é fazer com que o Estado sempre atue no sentido de melhorar progressivamente as condições de vida da população. Qualquer medida estatal que tenha por finalidade suprimir garantias essenciais já implementadas para a plena realização da dignidade humana deve ser vista com desconfiança e somente pode ser aceita se outros mecanismos mais eficazes para alcançar o mesmo desiderato forem adotados.

Dois são os motivos a afastar a aplicação do princípio da proibição de retrocesso à hipótese trazida pela Lei nº 11.719/08. O primeiro é que tal princípio relaciona-se a direitos fundamentais de cunho social e relacionados com políticas públicas, não se aplicando a aspectos procedimentais de incidência da lei penal, que pouca ou nenhuma implicação terão na privação de liberdade (convenhamos, o fato de o juiz receber a denúncia antes ou depois da defesa não produz nenhuma alteração no status libertatis do acusado).

O segundo motivo é evidente: no sistema originário do Código de Processo Penal o juiz já recebia a denúncia antes da defesa do acusado e sem contraditório prévio. Portanto, se a sistemática restou mantida com a reforma, não há falar em retrocesso.

De resto, é comum que os defensores da tese de recebimento da denúncia na fase do art. 399 do Código de Processo Penal invoquem a interpretação constitucional como fundamento para seu entendimento. Contudo, como já dito, não há qualquer norma constitucional que trate do tema, ainda que de forma indireta (até porque, caso existisse comando constitucional que levasse à conclusão de que a denúncia somente poderia ser recebida após contraditório prévio, todos os processos posteriores a 1988 seriam nulos).

Para justificar o viés constitucional de sua tese, tais doutrinadores costumam invocar a aplicação da interpretação pós-positivista. Contudo, também com isso não angariam melhor êxito. A interpretação pós-positivista funda-se na primazia dos valores constitucionais sobre as normas escritas, mas sua invocação generalizada acaba levando a uma banalização da inconstitucionalidade. É comum que, nos dias atuais, qualquer alteração legislativa tenha sua constitucionalidade questionada com base em valores previstos na Constituição abstratamente. Contudo, não existe valor constitucional que garanta aos acusados direito a se contraporem à acusação antes de recebida a denúncia.

Quanto a esse último aspecto, cabe uma crítica. A doutrina recente tem conferido um grande valor à decisão de recebimento da denúncia. Diz-se que deve haver especial cuidado nesse ato, porque a partir dele o denunciado passa a ostentar a condição de réu. Isso, contudo, não pode trazer a ninguém qualquer demérito ou restrição à liberdade. O recebimento da denúncia é simples ato de admissão formal de uma peça processual, e a transformação do denunciado em réu é mera alteração da condição processual, mas não pode trazer conseqüências extra-autos em razão do princípio da presunção de inocência.

Se ninguém poderá ser considerado culpado até que condenado de forma definitiva, o fato de figurar como réu não pode trazer gravame algum. Daí o motivo que leva a jurisprudência a não admitir que processos penais em andamento possam ser considerados como maus antecedentes, por exemplo.

O exacerbado valor que a doutrina têm conferido ao recebimento da denúncia é incompatível com uma interpretação adequada da norma constitucional, em especial do princípio da presunção de inocência. Em razão dele, a condição de qualquer pessoa, antes do recebimento da denúncia, depois dele ou mesmo após condenação pendente de recurso é a mesma: inocente.

Sendo assim, inexistindo específico gravame oriundo do recebimento da denúncia, não se pode dizer que a Constituição exija do legislador a construção de procedimentos que garantam ao denunciado meios de se pronunciar antes desse juízo de delibação, de molde que não se pode invocar a inconstitucionalidade, por qualquer ângulo que se observe, da regra do art. 396 do Código de Processo Penal.

De resto, cabe observar que a interpretação que conclui que o recebimento da denúncia se dá na fase do art. 399 do Código de Processo Penal gera insuperáveis problemas processuais. Além da já mencionada incompatibilidade com outras normas do código (como o art. 366 e os arts. 354, 354 e 365), outro problema surge do cotejo desse diploma com o art. 397. Com efeito, ao se considerar que o recebimento da denúncia ocorre somente na fase do art. 399, há que se admitir que nessa fase o juiz terá de analisar, também, o pedido de absolvição sumária fundado no art. 397. Contudo, caso se acolha a tese, criar-se-á situação totalmente incompatível, porque o juiz absolverá o denunciado sem que sequer exista denúncia recebida (portanto, absolvê-lo-á do que?).

Sendo assim, não vejo motivo plausível que permita admitir que o recebimento da denúncia se dê na fase do art. 399 do Código de Processo Penal, após contraditório prévio, tese essa que, se acolhida, causaria inúmeras incompatibilidades interpretativas.

Destarte, conclui-se que, após o advento da Lei nº 1.719/08, o juiz, ao tomar contato com a denúncia, exercerá o juízo de recebimento ou rejeição, observando as hipóteses do art. 395 e, no primeiro caso, determinará a citação do réu para apresentar defesa e comparecer à audiência de instrução, também designada no despacho inicial. Por essa sistemática, antes da audiência, poderá o juiz, caso a defesa assim o requeira, absolver sumariamente o réu se presente alguma das hipóteses do art. 397 do Código de Processo Penal (exceto o inciso IV, que ensejará mera extinção de punibilidade).

Essa interpretação, além de permitir a compatibilização de todas as normas do Código de Processo Penal, viabiliza o desenvolvimento de um processo penal célere e menos sujeito a intercorrências, promovendo a celeridade procedimental, escopo fundamental da norma. Além disso, a exegese sustentada neste artigo se revela, numa interpretação histórica, mais consentânea com os propósitos do legislador ao modificar os termos do projeto original, afigurando-se, assim, como solução mais adequada para aplicação das normas da Lei nº 11.719/08.

[1] Solução para o absurdo legal e técnico do novo art. 396 do CPP. Jornal “O Estado do Paraná”, Caderno Direito e Justiça de 20/09/2008.
[2] Reforma Penal. O impasse na interpretação do art. 396 do CPP. Disponível na internet em: http://www.conjur.com.br/static/text/69984,1 . Acesso em 04/10/2008.
[3] Efeito Cliquet. Disponível na internet em http://georgemlima.blogspot.com/2008/03/efeito-cliquet.html. Acesso em 04/10/2008.

Pergunta e resposta:

1. edson brasil
boa noite,
gostei muito do artigo
apenas pergunto: o prazo legal estipulado de 10 dias do 396 começa correr a partir da ciência da parte ou do advogado, se vários réus, o prazo seria comum a todos a partir do primeiro advogado ter ciência? ou depois que todos tiverem sido intimados? Agora se um dos advogados ou a parte não for cientificado como poderia o juiz marcar a audiencia de instrução.
tks
edson

1. Marcelo Bertasso
Edson, suas perguntas foram muito boas. Vou tentar respondê-las:
1. O prazo de defesa corre a partir da citação pessoal do réu;
2. No caso de vários réus, penso que os prazos sejam individuais, não se aplica a regra do CPC.
3. Quanto à não citação de uma das partes, não há possibilidade de realizar a audiência de instrução e julgamento. O procedimento será similar ao que hoje ocorre no Juizado Especial Criminal: a audiência de instrução só ocorre com citação de todos os réus. Não sendo localizado um deles, convém desmembrar o processo quanto a ele.
É o que penso. Mas temos muitas coisas da lei nova a discutir. Mande suas opiniões.
Abraços,
Marcelo Bertasso

Fonte: http://mpbertasso.wordpress.com

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Roubo: Ideologia do Inimigo e o Momento Consumativo

Luiz Flávio Gomes
Professor Doutor em Direito penal pela Universidade de Madri, Mestre em Direito penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

A Primeira Turma do STF, em 16.09.08, no HC 92.450-DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, rel. p/ o acórdão Min. Ricardo Lewandowski, ratificou antigo entendimento do mesmo tribunal no sentido de que o roubo se consuma com o simples apossamento do bem, independentemente da inversão tranqüila da posse. Afirmou-se o seguinte: ainda que haja perseguição imediata e recuperação da coisa, ainda assim, tratar-se-ia de roubo consumado (não tentado).
Totalmente equivocado (com a devida vênia) esse posicionamento do STF (Primeira Turma). Dele o que se extrai de pronto é o fundo ideológico punitivista (ideologia do inimigo), que constitui a base do Direito penal do inimigo. Confundiu-se crime material (que exige resultado naturalístico para a consumação) com crime formal (que não exige esse resultado naturalístico).
Resultou obscurecida a distinção entre consumação formal (adequação do fato à letra da lei) e consumação material (que só ocorre com a efetiva lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico). Desprezou-se a nítida diferença que existe entre crime de lesão e o crime de perigo.
Conceitos dogmáticos (técnico-jurídicos) elementares foram menosprezados na decisão mencionada, que retrata um claríssimo distanciamento entre a ciência penal (dogmática) e a jurisprudência.

Em virtude do preconceito ideológico, resultaram atropelados conceitos essenciais do Direito penal. A ideologia (do inimigo) gera, muitas vezes, verdadeiro eclipse da ciência (penal), numa espécie de obscuridade voluntária, que resulta numa brutal distorção de conceitos. O pior cego, também quando se trata do poder punitivo do Estado, é o que não quer enxergar. Sabe que tecnicamente está errado, mas não tem predisposição para superar seus prejuízos (pré-juízos) ideológicos.

Quando se consuma o delito de roubo (próprio)? Ora, cuidando de delito material (que exige resultado naturalístico para a consumação), parece evidente afirmar que o roubo próprio consuma-se no momento em que ocorre a efetiva lesão patrimonial. Não se trata de crime de perigo (que se consumaria com o simples desvalor da conduta dotada de periculosidade para o bem jurídico). Não se trata de crime formal (que também se consumaria com o simples desvalor da conduta). Roubo é um delito material (do ponto de vista naturalístico) e de lesão (do ponto de vista jurídico).

Não se pode nunca confundir o roubo (CP, art. 157) com a extorsão (CP, art. 158). Sob o enfoque naturalístico a extorsão é crime formal (não necessita de resultado naturalístico para se consumar). Sob o enfoque jurídico a extorsão é um crime de perigo (não se exige lesão do bem jurídico patrimonial, basta seu efetivo risco). O roubo (distintamente) é crime material (exige resultado naturalístico para se consumar) e de lesão (exige lesão efetiva ao bem jurídico patrimônio).

Conclusão: sem a efetiva (real, concreta e comprovada) lesão patrimonial não há que se falar em roubo (próprio) consumado, que exige desvalor da conduta (conduta perigosa para o bem jurídico) mais desvalor do resultado (lesão patrimonial efetiva). Enquanto o agente não tem a posse tranqüila da coisa subtraída não há que se falar em consumação, porque ainda não se concretizou o desvalor do resultado (a lesão). O apossamento da coisa, por si só, já representa um perigo para o bem jurídico (isso não se discute). Essa situação de perigo se desfaz no instante em que a coisa subtraída ingressa na esfera de disponibilidade tranqüila do agente.

Uma boa fórmula para decifrar essa questão ocorre quando o agente pode, com toda tranqüilidade, dizer: agora posso desfrutar da coisa subtraída. Enquanto essa situação de posse tranqüila não se dá, pode-se afirmar a ocorrência de um perigo para o bem jurídico (não uma lesão efetiva, que é necessária para a consumação do roubo).

O acórdão publicado no HC 92.450-DF fala em "roubo frustrado", que se consumou (sic). Cuida-se de ato falho (do relator) que bem explica o íntimo conflito entre o que ele sabe e o que ele concluiu. O eminente relator sabe que realmente houve um roubo frustrado, ou seja, tentado, mas concluiu pela consumação.

A técnica briga, muitas vezes, com a ideologia. Por razões técnicas o caso descrito (subtração e imediata perseguição, sem ter havido posse tranqüila) constitui roubo tentado. Em virtude de diretrizes ideológicas concluiu-se pela consumação.

Correto, assim, o posicionamento do Min. Marco Aurélio, que, embora vencido, traduzia a melhor doutrina bem como o ponto de vista técnico mais adequado. Pelo seu voto ele restabelecia a decisão do TJSP, que havia reconhecido o roubo tentado (acertadamente). Sem posse tranqüila (do bem subtraído) jamais se pode afirmar a consumação (material) do roubo, que exige lesão efetiva do bem jurídico tutelado pela norma penal.

Em Direito penal perigo é perigo, lesão é lesão. Uma situação de perigo (presente quando o agente é perseguido imediatamente e o bem é restituído) não pode nunca se confundir com lesão (que ocorre, no caso do roubo, quando o bem jurídico foi concretamente lesado).

Fazendo um paralelo com o homicídio: o dar a facada, o levar a vítima para o hospital, fazer cirurgia etc.: tudo isso ainda representa apenas um perigo para vida da vítima. No instante em que ela morre, o delito se consuma. No roubo: o subtrair o bem, o tentar se afastar do local dos fatos, o ser perseguido etc.: tudo isso representa mero perigo para o bem jurídico patrimonial. Quando acontece a posse tranqüila, consumado está o roubo. Antes disso, só existe uma situação de perigo (que retrata uma tentativa, nos crimes de lesão, não a consumação).

Enviado por: Mariana Pimentel Miranda dos Santos
RML Advocacia e Consultoria


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