Luiz Flávio Gomes
Professor Doutor em Direito penal pela Universidade de Madri, Mestre em Direito penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
A Primeira Turma do STF, em 16.09.08, no HC 92.450-DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, rel. p/ o acórdão Min. Ricardo Lewandowski, ratificou antigo entendimento do mesmo tribunal no sentido de que o roubo se consuma com o simples apossamento do bem, independentemente da inversão tranqüila da posse. Afirmou-se o seguinte: ainda que haja perseguição imediata e recuperação da coisa, ainda assim, tratar-se-ia de roubo consumado (não tentado).
Totalmente equivocado (com a devida vênia) esse posicionamento do STF (Primeira Turma). Dele o que se extrai de pronto é o fundo ideológico punitivista (ideologia do inimigo), que constitui a base do Direito penal do inimigo. Confundiu-se crime material (que exige resultado naturalístico para a consumação) com crime formal (que não exige esse resultado naturalístico).
Resultou obscurecida a distinção entre consumação formal (adequação do fato à letra da lei) e consumação material (que só ocorre com a efetiva lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico). Desprezou-se a nítida diferença que existe entre crime de lesão e o crime de perigo.
Conceitos dogmáticos (técnico-jurídicos) elementares foram menosprezados na decisão mencionada, que retrata um claríssimo distanciamento entre a ciência penal (dogmática) e a jurisprudência.
Em virtude do preconceito ideológico, resultaram atropelados conceitos essenciais do Direito penal. A ideologia (do inimigo) gera, muitas vezes, verdadeiro eclipse da ciência (penal), numa espécie de obscuridade voluntária, que resulta numa brutal distorção de conceitos. O pior cego, também quando se trata do poder punitivo do Estado, é o que não quer enxergar. Sabe que tecnicamente está errado, mas não tem predisposição para superar seus prejuízos (pré-juízos) ideológicos.
Quando se consuma o delito de roubo (próprio)? Ora, cuidando de delito material (que exige resultado naturalístico para a consumação), parece evidente afirmar que o roubo próprio consuma-se no momento em que ocorre a efetiva lesão patrimonial. Não se trata de crime de perigo (que se consumaria com o simples desvalor da conduta dotada de periculosidade para o bem jurídico). Não se trata de crime formal (que também se consumaria com o simples desvalor da conduta). Roubo é um delito material (do ponto de vista naturalístico) e de lesão (do ponto de vista jurídico).
Não se pode nunca confundir o roubo (CP, art. 157) com a extorsão (CP, art. 158). Sob o enfoque naturalístico a extorsão é crime formal (não necessita de resultado naturalístico para se consumar). Sob o enfoque jurídico a extorsão é um crime de perigo (não se exige lesão do bem jurídico patrimonial, basta seu efetivo risco). O roubo (distintamente) é crime material (exige resultado naturalístico para se consumar) e de lesão (exige lesão efetiva ao bem jurídico patrimônio).
Conclusão: sem a efetiva (real, concreta e comprovada) lesão patrimonial não há que se falar em roubo (próprio) consumado, que exige desvalor da conduta (conduta perigosa para o bem jurídico) mais desvalor do resultado (lesão patrimonial efetiva). Enquanto o agente não tem a posse tranqüila da coisa subtraída não há que se falar em consumação, porque ainda não se concretizou o desvalor do resultado (a lesão). O apossamento da coisa, por si só, já representa um perigo para o bem jurídico (isso não se discute). Essa situação de perigo se desfaz no instante em que a coisa subtraída ingressa na esfera de disponibilidade tranqüila do agente.
Uma boa fórmula para decifrar essa questão ocorre quando o agente pode, com toda tranqüilidade, dizer: agora posso desfrutar da coisa subtraída. Enquanto essa situação de posse tranqüila não se dá, pode-se afirmar a ocorrência de um perigo para o bem jurídico (não uma lesão efetiva, que é necessária para a consumação do roubo).
O acórdão publicado no HC 92.450-DF fala em "roubo frustrado", que se consumou (sic). Cuida-se de ato falho (do relator) que bem explica o íntimo conflito entre o que ele sabe e o que ele concluiu. O eminente relator sabe que realmente houve um roubo frustrado, ou seja, tentado, mas concluiu pela consumação.
A técnica briga, muitas vezes, com a ideologia. Por razões técnicas o caso descrito (subtração e imediata perseguição, sem ter havido posse tranqüila) constitui roubo tentado. Em virtude de diretrizes ideológicas concluiu-se pela consumação.
Correto, assim, o posicionamento do Min. Marco Aurélio, que, embora vencido, traduzia a melhor doutrina bem como o ponto de vista técnico mais adequado. Pelo seu voto ele restabelecia a decisão do TJSP, que havia reconhecido o roubo tentado (acertadamente). Sem posse tranqüila (do bem subtraído) jamais se pode afirmar a consumação (material) do roubo, que exige lesão efetiva do bem jurídico tutelado pela norma penal.
Em Direito penal perigo é perigo, lesão é lesão. Uma situação de perigo (presente quando o agente é perseguido imediatamente e o bem é restituído) não pode nunca se confundir com lesão (que ocorre, no caso do roubo, quando o bem jurídico foi concretamente lesado).
Fazendo um paralelo com o homicídio: o dar a facada, o levar a vítima para o hospital, fazer cirurgia etc.: tudo isso ainda representa apenas um perigo para vida da vítima. No instante em que ela morre, o delito se consuma. No roubo: o subtrair o bem, o tentar se afastar do local dos fatos, o ser perseguido etc.: tudo isso representa mero perigo para o bem jurídico patrimonial. Quando acontece a posse tranqüila, consumado está o roubo. Antes disso, só existe uma situação de perigo (que retrata uma tentativa, nos crimes de lesão, não a consumação).
Enviado por: Mariana Pimentel Miranda dos Santos
RML Advocacia e Consultoria
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Roubo: Ideologia do Inimigo e o Momento Consumativo
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